Vamos entender melhor como ocorreu a evolução da razão de aspecto, quais decisões levaram as proporções antigas à obsolescência e porque o aspecto 4:3 está dando as caras nas telinhas novamente.
As primeiras razões de aspecto
No início do cinema, com as primeiras projeções de filme em torno dos anos 1900, decisões precisaram ser tomadas quanto ao formato de filmagem e de exibição das películas – considerando, claro, as restrições técnicas dos aparelhos da época. Foi descoberto que o tamanho equivalente a quatro perfurações no filme de 35mm, numa proporção quadrada de 1.33:1 (ou seja, a largura da projeção é 1,33 vezes maior do que a sua altura), era o ideal – o que gerou o aspecto 4:3. Com o advento do cinema falado, na década de 30, a trilha de áudio teve de ser inserida nos rolos de filme, o que alargou a proporção para 1.37:1, apenas um pouquinho maior e próxima o suficiente do aspecto 4:3 para não causar grandes mudanças. O formato ficou tão padronizado que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas o batizou de Academy Ratio (“razão da academia”, em tradução livre). Por muito muito tempo, essa razão de aspecto ficou sendo a mais comum para os aparelhos que reproduziam filmes e programas filmados no geral, tanto que as televisões, desde o seu início, tomaram o formato quadrado que conhecemos. Elas, aliás, foram um dos grandes motivos para que as proporções mudassem: as pessoas estavam começando a ver filmes em casa, em seus televisores, do mesmo jeito que faziam no cinema – claro, em telas menores – mas a democratização do audiovisual tirou um pouco do prestígio do cinema, que perdeu audiência consideravelmente.
Inovações e rupturas
Buscando formas de trazer uma experiência diferenciada para atrair espectadores aos cinemas, os estúdios resolveram alargar a proporção dos filmes, tentando também comparar a experiência do cinema à experiência visual humana (já que nossa visão biológica traz uma imagem mais “larga”). Abandonar o aspecto 4:3 não foi tão fácil por limitações técnicas, mas, nos anos 50, as lentes anamórficas foram inventadas; basicamente, elas filmam uma imagem distorcida, esticada verticalmente, que cabia no formato quadrado da película. Na hora de editar, ela poderia ser retornada à proporção “correta”, deixando o filme em um formato mais largo – nascia, assim, o CinemaScope (“escopo de cinema”, em tradução livre), na proporção 2.33:1, ou aspecto 21:9, que assumiu o formato alongado ao qual estamos acostumados hoje em dia. Apesar de muitas proporções se proliferarem e “competirem” com o aspecto CinemaScope, a novidade cinematográfica foi um sucesso, já que todos adoraram ver grandes paisagens e, aparentemente, mais informação na tela, e os filmes de tela larga viraram lei – deixando o aspecto 4:3 relegado às telas de tevê por muito tempo. Foi só com o surgimento das televisões Widescreen (“tela larga”, em tradução livre) que, finalmente, tudo passou a ter o formato esticado horizontalmente, até as séries televisivas. O aspecto 4:3 praticamente sumiu, já que, para acomodar o formato das produções audiovisuais, tudo passou a assumir o aspecto 16:9 – desde os DVDs aos Blu-Rays e, atualmente, também os streamings em 4K. Todos nos acostumamos à proporção retangular utilizada por todos os cantos, e agora qualquer celular filma e reproduz vídeos nesse formato. Mas… será que o 4:3 sumiu mesmo?
O retorno do aspecto 4:3 aos holofotes – ou aos projetores
A verdade é que o aspecto 4:3 nunca sumiu por completo – vários filmes ainda vinham utilizando essa proporção, só que de formas diferentes, para ajudar a contar suas histórias. Produções como Irmão Urso (2003), Os Incríveis (2004) e O Grande Hotel Budapeste (2013), por exemplo, se utilizaram de algumas cenas com o aspecto quadrado para transmitir alguma coisa, seja a sensação de estar vendo um momento do passado ou a representação de sentimentos claustrofóbicos sentidos pelas personagens. Nos últimos anos, no entanto, a antiga proporção sofreu uma revitalização inédita, com diversos filmes sendo exibidos inteiramente em aspecto 4:3. Docinho da América (2016), Sombras da Vida (2017), No Coração da Escuridão (2017), Com Amor, Vincent (2017) e O Farol (2019) são apenas alguns dos exemplos recentes, e o último foi até mesmo indicado ao Oscar (caso queira conferir os vencedores do Oscar de 2021, já falamos sobre isso). Até mesmo séries de TV viram o formato retornando, como WandaVision (2021) – onde o objetivo é, justamente, representar as séries de tevê de décadas passadas. As razões para os diretores escolherem o velho formato são diversas. Às vezes a intenção é emular um filme antigo, às vezes é para dar a sensação de claustrofobia, às vezes é apenas para dar um ar intimista – já que os rostos aparecem melhor nos closes, adicionando mais profundidade aos diálogos – e às vezes é tudo isso junto. O fato é que o 4:3 parece ter voltado para ficar, pelo menos por mais um tempinho.
Os streamings e o papel da quarentena
De certa maneira, o foco nos streamings proporcionado indiretamente pela pandemia de coronavírus influenciou algumas produções. Em entrevista para o Dazed, o diretor de Estou Pensando em Acabar com Tudo (2020) disse: Em seguida, ele dá a entender que, sem o apoio do serviço de streaming, o longa não teria saído – dizendo, inclusive, que o filme era “intencionalmente não-comercial”. Com grandes produções do cinema sendo adiadas ou simplesmente saindo diretamente no streaming, o sucesso de filmes como o de Kaufman se tornou mais viável. Não podemos nos esquecer do mais recente filme em aspecto 4:3, a Liga da Justiça de Zack Snyder (2021). Depois de muita insistência dos fãs, o corte do diretor, que é uma versão alternativa de Liga da Justiça de Joss Whedon dos cinemas, de 2017, acabou saindo na HBO Max – e, por acaso, tem um formato quadrado. A proporção mais vertical do filme, aparentemente, tem o papel de destacar a imponência e o heroísmo das personagens épicas, e era a ideia desde o início das gravações. O filme de Zack Snyder causou estranheza imediata aos espectadores que ligaram o filme nos monitores e televisões em casa por conta do aspecto 4:3, e alguns reclamaram por acreditarem estar vendo menos elementos em cena – o que é curioso, já que o formato na verdade inclui mais do que a versão de Joss Whedon – porém, seja piada ou confusão, a proporção do filme se tornou algo memorável, assim como a dos já citados filmes quadradinhos recentes. Em última análise, as proporções mais quadradas de alguns filmes são apenas modos diferentes de se contar histórias, abrindo mão das paisagens para focar nos personagens e em ambientes mais intimistas. A variedade é bem vinda e deixa a cultura pop repleta de produções mais ricas, dando respiros em meio à mesmice. Esperamos que, por mais alguns anos, ainda vejamos o 4:3 por aí – por mais estranho que ele pareça em nossos monitores 16:9. Aproveite, caro leitor, e leia a review da Liga da Justiça de Zack Snyder que fizemos aqui mesmo, no Showmetech. Fontes: Techradar, Av Makers, Dazed, Shutterstock, Neil Oseman e Sprout Video.