Enquanto o projeto de Martin Scorsese chega como uma novidade bem-vinda, um novo projeto de Steven Spielberg, outro membro do polêmico grupo “Hollywood brats” (que também integra George Lucas) é aguardado com ansiedade, depois da confirmação de um contrato milionário entre a nova plataforma da Apple e o diretor. Enquanto as séries originais da Apple não tenham sido muito felizes em suas estreias, há a possibilidade que seja muito bem-sucedida no lançamento de filmes originais. Além de Spielberg, Alfonso Cuarón, o mesmo diretor de Roma, assinou contrato com a concorrente. Para aqueles que saíram embasbacados do cinema com a força potente de Coringa, vai encontrar aqui aquela mesma vivacidade que deu novo fôlego ao grande vilão do Batman nas telonas. Não é nenhum segredo que Todd Philips usou como fonte de inspiração alguns clássicos de Martin Scorsese, sendo eles Taxi Driver e O Rei da Comédia, e há vários momentos, desde a escolha de pontos de vista, a cinematografia e gênesis de personagem que remete o melhor do cinema do diretor. O olhar atento e cruel, que busca dissecar as minúcias humanas e a presença e atuação implacável de Robert De Niro são presentes tanto em Coringa quanto em O irlandês, um filme do Scorsese em sua essência, idealizado e dirigido pelo próprio. A estreia do aclamado diretor nas plataformas de streaming não soa exatamente como uma surpresa. Afinal, o sucesso de Roma na última temporada de premiações justifica a parceria. Mas ela vai além, e para além do que é testemunhado em tela. Muito além das polêmicas com a Marvel, sua batalha incessante pela restauração de clássicos ou simplesmente um dos diretores mais cinéfilos de Hollywood, o que Martin Scorsese entrega em O irlandês precisa de um momento de atenção e cumplicidade. Isso porque o filme assume uma postura de alguém que sussurra um segredo, ou porque ele sabe que entrega história do cinema em puro conflito, ação e movimento.
Parceria além da tela marca presença em O irlandês
Faz quase um quarto de século que Martin Scorsese juntou forças com Robert De Niro e Joe Pesci para seu épico drama da máfia Casino. Agora, graças em parte ao milagre da tecnologia digital de envelhecimento, o trio septuagenário se reuniu para outra história abrangente de crime e política, ao longo de – pasme – seis décadas, combinando a adrenalina episódica e adrenalina aos moldes de Os Bons Companheiros com uma melancolia mais contemplativa. Adaptação pelo roteirista de Gangues de Nova York, Steven Zaillian, a partir do livro de Charles Brandt, I Heard You Paint Houses, o longa O irlandês narra a vida e os tempos de Frank Sheeran, um veterano da segunda guerra mundial que virou capanga da máfia cuja história e jornada se entrelaça com a do famoso chefe do grupo sindical Teamsters, Jimmy Hoffa, vivido por ninguém menos que Al Pacino. Beneficiado pelo híbrido formato da Netflix, o longa conta com nada menos que três horas e meia de duração! Algo impensável para o cinema, mas sob medida para o público do streaming, acostumados com uma maneira mais orgânica de consumir entretenimento. Mas não pense que isso seja um empecilho, afinal, a energia com a qual Scorsese conduz essa jornada labiríntica garante que O irlandês tenha capacidade cinematográfica suficiente para mantê-lo preso em suspensão e tensão ao longo de sua reprodução. Em O irlandês, conhecemos Frank pela primeira vez nos anos 80, em estado decrépito e ruminativo. A sequência inicial se dá com um efetivo monólogo interior confessional que logo dá conta em culminar em narração externa, enquanto ele olha para sua vida com uma mistura de orgulho e arrependimento. Com o queixo erguido e os olhos azuis sempre olhando em frente, De Niro nos conduz pelos anos selvagens de Frank – desde os eventos traumáticos da guerra (depois dos quais “aconteça o que acontecer, aconteça”) até um encontro casual com o chefe do crime de Pesci, Russell Bufalino (descrito por Frank como “o resto da minha vida”) e uma introdução a Hoffa (Al Pacino, um ser barulhento e irritadiço). A relação de Frank e Hoffa é permeada de pequenos atritos, tudo isso está enquadrado em uma “missão de paz” – uma viagem de 1975 da Pensilvânia a Michigan, com quebras de cigarro e flashbacks de retrovisores de um passado em que o sangue é derramado sobre paredes e rostos. Enquanto Frank joga suas cartas e faz suas jogadas de maneira racional e emocional, ele se vê preso a uma verdeiro emaranhado de bandidos com personalidades voláteis, do carismático líder sindical de Pacino, que aparece como um parente não tão distante de Tony Montana (alimentado por uma autoconfiança imparável), para Tony Pro, de Stephen Graham, referido com desprezo como “o rapazinho”, cuja companhia inspira nada além de genuína insegurança. Quanto a Pesci, seu Bufalino adota um eufemismo efetivo por toda parte, navegando com uma presença ausente através da neblina de eventos contestados, seus olhos muitas vezes escondidos por trás de óculos escuros que o garantem um ar misterioso, mas violento e perigoso. Sua presença é sempre anunciada com inevitável tensão em O irlandês, e, muitas vezes, ele se configura com um aura de um verdadeiro vilão. Vários personagens são apresentados com manchetes ofegantes na tela, detalhando seus nomes e a hora de suas mortes – algumas naturais, outras extremamente violentas. No entanto, embora o diálogo seja frequentemente engraçado e descontraído, é notável que estes momentos abrem espaço para uma suspensão com a presença desiludida de Anna Paquin. Sua atuação, dada muitas vezes a uma não-verbalização de seus anseios, servem como mecanismo de fragilização do personagem de Frank à medida em que ele vai ficando cada vez mais frustrado. Outro grande ponto a favor de O irlandês é a maneira primorosa na qual a história embaralha as décadas como um baralho de cartas (aplausos do editor Thelma Schoonmaker por fazer as transições parecerem totalmente orgânicas), o designer de produção Bob Shaw e os figurinistas Sandy Powell e Christopher Peterson garantem que cada vinheta tenha uma noção clara do tempo e lugar. Nada aqui é desperdiçado. Apesar de todos os seus truques de flashback/flash-forward, O irlandês raramente parece desarticulado ou fraturado tematicamente. Ele evoca uma ilusão caleidoscópica de profundidade que só começa a se quebrar quando o ritmo sinaliza no ato final. Ponto positivo. Quanto aos efeitos faciais regenerativos muito debatidos, eles são impressionantemente discretos. O irlandês é uma narrativa urgente. Em comparação com longas como Coringa, Parasita e Bacurau, seu discurso pode parecer um tanto desatualizado. Talvez o momento dos gangsters já tenha passado. Mas não há nada mais impressionante do que poder testemunhar em tela, em qualquer tamanho que seja, quatro forças sobrenaturais – Scorsese, De Niro, Pacino e Pesci – no auge de sua criação artística. Soa muitas vezes nostálgica, mas com certeza como uma celebração de uma carreira dedicada à apreciação e criação cinematográfica.
Para além do conflito
Muito mais do que um grande acontecimento, as promoções de O irlandês foi calcada com um burburinho intenso em cima de uma declaração de Martin Scorsese. Aos olhos do diretor, os filmes produzidos pelo Universo Cinematográfico Marvel estava aquém e não poderiam ser considerados cinema. A declaração negativa de um dos grandes diretores em atividade veio com um verdadeiro balde de água fria e, por dias, a opinião de Scorsese rachou Hollywood entre aqueles que concordavam e os que discordavam. Novas declarações foram acrescentando novos capítulos em um comentário que tornou-se uma verdadeira saga de diz e não-diz. O que é cinema e não é. O capítulo encerrou-se com um complexo editorial do diretor de O irlandês para o The New York Times, e, pelo menos por enquanto, a paz está selada. Independente do mérito do comentário de Scorsese, é verdade que existe um debate interessante que surge de sua preocupação, que virou, inclusive, tema do Enem 2019: o que está sendo projetado nos cinemas são apenas blockbusters, e nada mais. Qual espaço tem o cinema de autor além do streaming? Pegando pelo todo, Martin comentou a dificuldade de encontrar financiamento para seu projeto em grandes estúdios, e encontrou a oportunidade perfeita na Netflix. Com tantas sequências, live actions e reboots, seria que, para além da Marvel, o que Martin Scorsese criticava é a falta de espaço para o cinema de autor nas salas de cinema? Com a chegada de O irlandês e o lançamento de Uma história de casamento, de Noah Baumbach, previsto para o mês que vem, está aberta oficialmente as apostas da Netflix para a temporada de premiações. Os dois últimos anos servem como termômetro para se perceber a maneira que a indústria vem se moldando para melhor servir as necessidades do público e de si própria. Resta agora esperar, já que, muito provavelmente, a iniciativa vai se repetir nas plataformas de concorrentes.