Tendência furta-cor

Embora a grande estrela do último Emmy (o oscar da televisão norte-americana) tenha sido Game of Thrones, um dos grandes momentos da noite, verdade seja dita, foi quando Ru Charles, ou melhor, Ru Paul, ganhou o prêmio de melhor apresentador de reality show pela segunda vez consecutiva por seu show Ru Paul’s Drag Race, além de mais quatro estatuetas. Em sua décima temporada, o programa é um sucesso global por colocar nos holofotes um perfil que estamos acostumados a ver sempre como secundário. No começo desse ano, foi a vez da Netflix (que conta com o Drag Race no catálogo) investir no segmento de reality show purpurinado. Com Queer Eye, os Fab Five prometem promover uma reinvenção para pessoas que parecem estar com a vida um pouco fora dos trilhos. Entre cortes de cabelos e risadas, o grande trunfo do reality é promover a cultura LGBTQ+ para o grande público.

A estrutura do Revry

O ambiente do Revry poderia se passar facilmente como um prédio de fraternidade, começando pelo seu “escritório” principal, em Glendale, Califórnia, com aspas propositais, porque de escritório não tem nada. Com uma lareira que parece que não é usada há décadas, um surrado sofá decorado com almofadas da Mulher Maravilha, Star Wars e Steve Jobs, com um pôster do Getting Into Face acima, e livro sobre maquiagem club-kid,  que faz as vezes de mesa de café. Na televisão, não é o Netflix que está sendo transmitido. Ao invés disso, é um ciclo ininterrupto de programação inédita e necessária. E mesmo que o prédio não esteja próximo de nenhum campus universitário, o conteúdo do Revry tem sim seu viés educacional. Sendo guiado pelo lema: “Stream.Out.Loud” (ou “FaçaStream.Em.VozAlta”, em tradução literal), o serviço oferece nada mais, nada menos, do que que conteúdo LGBTQ+ para mais de 116 países – incluindo a China, algo que seus concorrentes não conseguiram fazer ainda. “Nós ainda não fomos censurados”, comenta Christopher Rodriguez, o diretor de negócios da plataforma em um bate-papo informal na escadaria do casarão. O CEO do Revry, Damian Pelliccione, comenta que o serviço de streaming contém uma infinidade de conteúdo LGBTQ+ em mandarim; “é algo que estamos verdadeiramente orgulhosos”, ele diz. “E é algo que é super importante para nós”. E é mesmo: o Revry possui alcance em países como Iraque e Arábia Saudita, lugares em que a sexualidade ainda é vista como tabu, e programação LGBTQ+ muitas vezes é proibida por lei, dando oportunidade para seu público a ter acesso a conteúdo que ele não teria como por outros meios. Mesmo que seja um conteúdo altruísta, esse não foi o principal objetivo do Revry num primeiro momento. Pelliccione e Rodriguez começaram a companhia em sua própria casa, em Los Angeles, lá em 2015. Um belo dia, a dupla, que forma um casal há mais de uma década, foi a uma loja Apple para consertar uma tela de iPhone quebrada e acabaram saindo de lá com uma Apple TV. A ideia para o serviço de streaming surgiu de uma indignação: não foram capazes de encontrar no serviço nenhum aplicativo com conteúdo voltado para o público LGBTQ+. Pelliccione, que trabalhava como instrutor do Youtube Space LA, decidiu mudar isso. E para tal, recrutou para uma reunião informal seu parceiro, Rodriguez, que trabalhava como advogado especializado em entretenimento e mais dois amigos – Alia Daniels, também advogada e LaShawn McGhee, um editor de cinema e televisão – todos apertados na sala de estar de seu apartamento. “Foi uma oportunidade que vimos ganhando espaço na mídia”, diz Pelliccione. “Somos uma empresa orientada por uma causa. Não foi apenas uma oportunidade de mercado, foi a oportunidade de alcançar as audiências que nunca se viram na televisão.” Depois dessa reunião, Daniels deixou o emprego em uma pequena startup; Rodriguez, que fazia parte da assessoria jurídica do programa Shark Tank, pediu as contas; e McGhee desistiu de um trabalho que estava editando e nunca olhou para trás. “Não havia mais nada que eu quisesse fazer depois disso”, comenta McGhee. Eles contrataram um desenvolvedor para trabalhar no aplicativo e passaram a pensar em ideias e soluções para o marketing. Menos de seis meses depois, em março de 2016, eles já tinham uma versão do aplicativo em versão beta que foi oficialmente lançado na San Francisco Pride, a parada gay de San Francisco. Cada um dos co-fundadores usava uma camiseta cor-de-rosa da empresa, e todos distribuíam os panfletos dizendo às pessoas para checarem o novo serviço de streaming.

LGBTQ+: Representatividade importa

A representação autêntica de pessoas LGBTQ+ é e nunca foi uma preocupação do mundo do entretenimento. Imagens de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgênero são escassas em filmes e programas de TV, assim como o acesso deles ao conteúdo. O Revry chega para suprir essa carência e fornece esse acesso. “Eles estão comprometidos com a ideia de inclusão e estão criando um espaço para que todas as vozes da comunidade sejam vistas e ouvidas”, diz Jeremy Blacklow, diretor de mídia de entretenimento da GLAAD (organização não governamental voltada para o público LGBTQ+). “Eles tiveram um ótimo começo e estamos empolgados para ver o que eles podem conseguir.” Desde o principio, o Revry queria criar um serviço que fornecesse um catálogo verdadeiramente diversificado, tanto para criadores quanto para suas estrelas, a fim de fornecer perspectivas além do padrão branco, cisgênero, masculino. Representações de pessoas LGBTQ+ na mídia são limitadas, assim como são negros e outras etnias. E as representações negras e homossexuais são ainda mais escassas. Um estudo recente da Iniciativa de Inclusão Annenberg, da USC, que compilou 1.100 filmes populares entre 2007 e 2017, revelou que apenas 31 dos 4.403 personagens em cena eram lésbicas, gays ou bissexuais e, desses, quase 68% eram brancos. Havia apenas um personagem transgênero nos 400 filmes lançados entre 2014 e 2017. E na TV, os números são ainda piores. No ano passado, um relatório da GLAAD descobriu que, dos 901 personagens regulares em programas de horário nobre, apenas 58 – 6,4% – foram identificados como LGBTQ+. No total, havia 329 personagens regulares e, embora isso já seja um aumento em relação ao ano anterior, o número de pessoas negras e LGBTQ+ na TV caiu. Pouco após seu lançamento, o Revry recebeu milhares de downloads em mais de 50 países em questão de semanas. Os fundadores da empresa atribuem muito disso ao boca-a-boca, mas também por oferecerem conteúdo para todos. É só tomar como exemplo suas principais séries: A ‘Outra’ História de Amor, uma série de web lésbica da Índia; Antes de Ficar Famoso, um original do Revry sobre um jovem de 21 anos que se mudou da China para Hollywood para se tornar um ator; ou FML, uma websérie cômica sobre cinco amigos negros apenas tentando viver a sua vida. Há também programas como o Queens of Kings, uma série de documentários sobre drag queens no Brooklyn que inclui Aquaria, vencedora da 10ª temporada de Drag Race. Revry expandiu-se também em projetos em outras plataformas como o evento TrevorLive do Trevor Project e lançou uma série de podcasts, incluindo um talk show do YouTuber Foxy (também conhecido como Jade) chamado Do Not Disturb. Outro destaque fica com  podcast de Daniel Franzese, também conhecido como o Damian de Meninas Malvadas. O lote da empresa em Glendale inclui um estúdio onde os podcasters podem gravar seus programas.

Conexões

O resultado do trabalho do Revry são cartas e mensagens de agradecimento do mundo todo. Um usuário da Arábia Saudita encontrou Pelliccione no LinkedIn para agradece-lo pelo aplicativo. “Eu não sabia que filmes gays existiam. Eu não sabia que haviam outras pessoas como eu no mundo”, comentou. Outra mensagem de um jovem de 22 anos no Iraque deixa claro suas dificuldades financeiras, acrescentando que “não posso viver, sou perseguido e todo dia penso em suicídio”. Foram esses casos e muitos outros que levou os co-fundadores do Revry a mudar de um modelo de assinatura para um suportado por anúncios. Anteriormente, os espectadores só podiam assistir ao canal gastando US$ 6,99 por mês por uma assinatura (US$ 4,99 por mês para aqueles que optaram pelo pacote anual). Agora, se eles estiverem dispostos a assistir a alguns comerciais, é possível acessar o serviço gratuitamente, sem necessidade de login. (Claro que a versão sem anúncios também é uma opção para aqueles que podem se inscrever, é claro.) O ponto, essencialmente, é não apenas hospedar uma variedade de histórias, mas também entregá-las ao maior número de pessoas possível. “Eu tomo como certo que, na maior parte do tempo, eu moro em uma cultura e lugar onde eu posso ser quem sou, independentemente do meu gênero, ou a cor da minha pele”, diz McGhee. “Mas isso não é uma realidade para todo mundo… Temos que dizer: Estamos aqui, somos LGBTQ+, mas, mais do que isso, estamos em toda parte”. Você já assistiu ao Revry? Deixe um comentário!

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